O vazio existencial dos obstinados
Era tão rico que só tinha dinheiro.
Por Inácio Feitosa*
No Cariri paraibano, em Monteiro, o tempo ensina mais do que corre. Foi ali, numa noite de lua alta sobre a caatinga, sentado à porta da casa grande da Fazenda Jatobá, dos Santa Cruz — terra de meus antepassados — que ouvi esse caso pela primeira vez. Quem contava era Zé Preto, caseiro antigo, homem de poucas palavras e muita memória. Contava para mim e para meu pai, João Feitosa Santa Cruz, ainda na década de 1980, nós três deitados em redes armadas na varanda, cada qual na sua, enquanto ele enrolava o fumo com calma, cuspia de lado e deixava a história correr como quem puxa conversa para espantar o silêncio da noite. Contava como quem não prega, apenas lembra.
Dizia ele que, certa manhã, o açude estava parado. Água quieta, espessa de silêncio. Três homens pescavam. Pouca fala, nenhum aperreio. O peixe não vinha em fartura, mas vinha. O suficiente para o dia e para a dignidade.
Chegou um homem de fora. Sudestino. Roupa limpa demais para aquele chão rachado. Olhar inquieto, desses que medem tudo como se a vida fosse planilha.
— Por que vocês estão pescando aí? — perguntou.
O matuto respondeu simples, sem tirar os olhos da água:
— Pra comer. Pra levar pra casa.
O homem achou pouco. Pensou alto:
— Você podia botar esses homens pra trabalharem pra você. Comprar mais barcos. Pescar mais.
O matuto esperou um tempo, como quem escuta o vento antes da chuva:
— Pra quê?
— Pra vender mais.
— Pra quê?
— Pra ganhar dinheiro.
— Pra quê?
O sudestino respirou fundo:
— Pra um dia você não precisar mais trabalhar. Ficar tranquilo. Fazer só o que gosta. Pescar com seus amigos.
O matuto sorriu curto, quase piedoso:
— Oxente… é isso que eu já faço.
E voltou ao anzol.
Zé Preto dizia que o homem foi embora calado. A conta estava certa. O sentido, não. E talvez por isso a história tenha ficado.
Pensei nisso muitas vezes depois. Porque o obstinado moderno raramente se reconhece nesse espelho. Ninguém o chama de fracassado. Pelo contrário. Seu nome costuma ser sinônimo de sucesso, disciplina e vitória. Constrói biografias impecáveis, dessas que impressionam em discursos e causam silêncio em reuniões. Trabalha como quem cumpre um chamado — mas esquece de perguntar quem o chamou.
A obstinação começa como virtude. Acordar cedo, insistir, não desistir. Com o tempo, deixa de ser método e vira altar. Tudo passa a girar em torno do desempenho. Deus fica para depois, como se a eternidade pudesse aguardar o fechamento do próximo negócio.
Era tão obstinado que passou a criar mentiras — e acreditar fielmente nelas. Mentiras para justificar ausências, para suavizar durezas, para explicar por que não voltava cedo, por que não ouvia mais, por que não sentia culpa. Repetidas tantas vezes que já não distinguia estratégia de verdade. O autoengano virou abrigo.
A riqueza veio. Veio farta, visível, incontestável. Mas o coração continuava inquieto. Descobriu, tarde demais, que dinheiro compra quase tudo, exceto o silêncio interior. Quando cessava o barulho das metas, surgia um incômodo profundo — um vazio que não aparecia no balanço.
As pessoas foram virando meios. Relações, compromissos adiáveis. Afetos, custos operacionais. Ganhou influência, perdeu intimidade. Estava sempre cercado, raramente acompanhado. A solidão dos obstinados não é falta de gente; é falta de encontro.
Nunca aprendeu a parar. Ignorou o descanso como princípio, acreditando que pausar era sinal de fraqueza. Esqueceu que até Deus descansou — não por cansaço, mas para ensinar limite. O sábado simbólico da vida lhe parecia desperdício, quando era lembrança de humanidade.
Mediu o sucesso por números, não por frutos. Avaliou a vida por resultados, não por virtudes. Confundiu prosperidade com bênção, como se toda abundância fosse sinal de aprovação divina. Esqueceu que a Bíblia nunca prometeu cofres cheios, mas corações inteiros.
Evitava o silêncio. Sabia, no fundo, que é nele que Deus costuma falar. Preferia o ruído constante das ocupações, pois o recolhimento poderia revelar a distância entre tudo o que conquistou e tudo o que negligenciou.
Ajuntou tesouros onde o tempo alcança. Patrimônio, propriedades, poder. Mas esqueceu de construir o que não se perde: memórias, vínculos, fé, sentido. Quando percebeu, havia garantias para o futuro, mas nenhuma paz para o presente.
O matuto do açude da Fazenda Jatobá, em Monteiro, nunca fez conta grande. Não explorava ninguém. Dividia o pouco. Pescava com os amigos. Voltava para casa inteiro. Já vivia aquilo que o outro planejava viver um dia — quando tudo estivesse pronto.
No fim, o paradoxo se impõe sem barulho: há quem ganhe o mundo inteiro e perca a si mesmo. Era rico, sim. Tão rico… que só tinha dinheiro.
*Inácio Feitosa é advogado, escritor e pescador.















