A crônica domingueira
Por Magno Martins
Se Dom Hélder Câmara se tornou um símbolo mundial da luta contra a repressão, Dom Francisco Mesquita, o “Bispo Vermelho”, como assim ficou conhecido à frente da Diocese do Sertão do Pajeú por 40 anos, em Afogados da Ingazeira, virou uma lenda.
As lendas são histórias fantásticas, que costumam incluir seres encantados ou místicos. São modificadas ao longo do tempo pela imaginação do povo. Dom Francisco em seus 40 anos de bispado nunca se distanciou das suas ovelhas. Por isso, nas comemorações do seu centenário, em 2024, foi lembrado e reverenciado como o profeta do Sertão, pai dos pobres, defensor dos injustiçados.
Foi indomável. Sua voz não apenas trazia o conforto espiritual da palavra de Deus, mas ecoava em defesa dos mais pobres e dos direitos humanos, fiel aos princípios cristãos contra a fome, a violência e a repressão política. Sua profecia era sustentada na fé, na justiça e na solidariedade, principalmente para transformar o mundo, a partir do seu Sertão e da sua gente.
Quando o conheci, repórter foca no Diário de Pernambuco, fiquei impressionado com a sua postura, coragem e determinação. Não foi padre nem um bispo para dentro da igreja. Ele foi um padre e um bispo para o mundo. Era um irmão de toda a humanidade. Um líder que denunciou as injustiças sociais, a seca, os desgovernos, os malversadores do dinheiro público.
Apesar de bispo de uma região inóspita, sem grandes meios de comunicação e sem atenção da grande mídia, soube brigar na hora em que os interesses mais legítimos da sua aldeia estiveram em risco. Soube usar, como ninguém, a única tribuna popular em defesa do povo: a rádio Pajeú, onde mantinha um programa para orientar sobre direitos e deveres da sua gente sofrida e humilde.
Numa entrevista antológica ao Diário de Pernambuco, nos anos 80, chegou a defender os saques às feiras livres por camponeses esfomeados. Consegui resgatar um trecho da entrevista na qual afirma categoricamente que saquear não é crime. Confira abaixo!
“Quando há necessidade, os bens se tornam comuns. Por isso, o saque é uma ação legítima e legal, desde que seja realizado somente nos casos em que a sobrevivência do homem está ameaçada. Isso está, inclusive, previsto no artigo 23 do Código Penal Brasileiro. Da mesma forma que a legítima defesa exclui do crime aquele que, para salvar a própria vida, tira a vida do outro. A Justiça, por exemplo, tira o crime de um filho que mata o pai, quando o filho matou o pai para poder se manter vivo. Ou você mata, ou morre. Os seguranças do presidente da República também podem matar uma pessoa para protegê-lo. Entretanto, é crime quando alguém saqueia um supermercado por vandalismo ou porque pretende montar uma bodega. Todos são iguais diante de Deus. Infelizmente, a divisão somos nós que fazemos. Aliás, muito mal feita.”
Quando provocado sobre a injusta concentração de renda no País, disse: “A distribuição de renda no Brasil é das piores do mundo, pelo alto grau de concentração, desde os tempos da colonização portuguesa. Isso se observa, sobretudo, no Nordeste. A principal causa está no neoliberalismo econômico, que ameaça esta nação, da pobreza e da miséria, da fome e da exclusão social de milhões e milhões de brasileiros. Basta considerar que 10% da população nordestina economicamente ativa não recebem qualquer rendimento e 60% percebem, no máximo, um salário mínimo mensal (R$ 100,00), enquanto, no Brasil como um todo, este percentual é de 30%”.
Dom Francisco era odiado e temido pelos poderosos. Mas tinha amor pelos pobres, doava o seu tempo precioso para o povo de Deus. Era o homem da palavra e se tornou o profeta. Seu lema episcopal era “Ut Vitam Habeant” (Para que tenham vida). Por quatro décadas como bispo da Diocese do Pajeú, assumiu papéis cruciais, incluindo participação no Concílio Vaticano II (1962-1965), dando contribuições como responsável pelo Setor da Pastoral Rural do Regional Nordeste 2 da CNBB.
Em 2001, quando celebrou 40 anos de sagração episcopal, Dom Francisco foi homenageado na Assembléia Legislativa de Pernambuco pelo então deputado estadual Orisvaldo Inácio (PMDB). Em toda sua vida, nunca se curvou aos mandatários. Combateu os poderosos, esteve ao lado dos mais humildes, lutou ao lado de sua gente nas secas que assolam o Nordeste.
O Bispo Vermelho nasceu em Santa Cruz, no Ceará, hoje Reriutaba, há 60 km de Sobral, onde viveu a infância e adolescência. Sua formação foi no Seminário Menor de Sobral e no Seminário Maior de Fortaleza. Trabalhou com a Ação Católica de jovens, depois JEC. Cursou Filosofia na Unicap e Direito na antiga Faculdade do Recife, hoje UFPE. Mas, segundo suas palavras, as duas universidades mais importantes de sua vida foram o Concilio Vaticano 2, que participou do primeiro ao último dia, e a vida episcopal no Sertão.
Participou também da CNBB e não perdeu uma só Assembleia e, por quatro anos, foi Secretário Geral. Participou do Regional Nordeste II e só perdeu uma reunião porque estava operado. No Regional foi responsável, por quatro anos, pela Pastoral Rural, e acompanhou a Comissão do Clero.
Foi um dos três bispos responsáveis pelo SERENE II e acompanhou as comunidades de seminaristas. Em Afogados da Ingazeira, fundou o instituto Diocesano Bíblico Teológico de Leigos e Leigas. Chegou a diplomar a Primeira turma de 50 alunos, após três anos de estudos e trabalhos pastorais.
Dom Helder foi seu padrinho de formatura e por isso foi escolhido pelos bispos do Nordeste para saudar D. Helder em sua chegada ao Recife. Dom Francisco morreu no dia 7 de outubro de 2006 no Recife, aos 82 anos.
Deixou como legado, dentre outros ensinamentos, sempre defender os sem-vez, ajudar os outros sem olhar a quem, e que não há penitência melhor do que aquela que Deus coloca em nosso caminho todos os dias.