Histórias de repórter
Por Magno Martins
No início da década de 80, ao ingressar no jornalismo como correspondente do Diário de Pernambuco no Sertão, tendo como QG Afogados da Ingazeira, minha terra natal, aprendi uma técnica muito prática e certeira para assustar o Governo, que fazia vistas grossas à famigerada indústria da seca: cutucar com vara curta Dom Francisco Austregésilo de Mesquita Filho, o verdadeiro porta-voz do povo oprimido e abandonado do Sertão.
Dom Francisco, como era conhecido, substituiu Dom Mota na Diocese de Afogados da Ingazeira nos anos 60 e ficou à frente do seu pastoreio por mais de 40 anos. Era um homem valente, que enfrentava os poderosos em qualquer circunstância. Sua arma era a sua palavra, guerreada e respeitada.
Intelectual refinado e plural nas suas ações, Dom Austregésilo estudou Filosofia em Fortaleza(CE), no período de 1946-1947. Também na capital cearense, cursou Teologia, de 1948 a 1951. Na sua formação acadêmica, constam também os cursos de Filosofia e Direito, realizados em Recife (1970-1974). Era ainda jornalista profissional. Sua morte em 2006 provocou um grande vácuo no movimento eclesial mais próximo do povo.
Defensor ardoroso da reforma agrária, que no seu entender teria que ser ampla, geral e irrestrita, como solução definitiva para os problemas da seca, Dom Francisco assombrava governos e autoridades. Em seu modesto Palácio em Afogados da Ingazeira, por trás da igreja que pregava seus sermões bombardeando as injustiças sociais, dom Francisco era visita obrigatória dos governantes.
Ainda “foca” (termo jornalístico para quem está iniciando a profissão), presenciei um duro diálogo dele com Marco Maciel, então governador biônico, que o visitara. “Não entenda como uma crítica, mas como todo governo falta também ao seu vontade política para acabar com a seca”, disse ele olhando firmemente para Maciel.
Maciel, aliás, escolheu um secretário de Agricultura, presente ao encontro, que não tinha a menor identidade com a região nem com os sertanejos: Emílio Carazzai, de carregado sotaque sulista. Carazzai ficou pouco tempo na pasta e em sua gestão permitiu que o programa emergencial da seca, a chamada “Frente de Emergência”, virasse um capítulo escandaloso no Pajeú, com desvio de recursos por um corrupto que comandava a Emater.
Carazzai passou a vigiar passo a passo as minhas andanças como repórter das secas, que denunciava e noticiava escândalos e injustiças, ajudado, vez por outra, por movimentos assumidos por Dom Francisco. Minhas pautas saiam de um programa ao meio dia na Rádio Pajeú, no qual o bispo mandava seus recados, orientava o povo para despertar em relação aos seus direitos.
“Falta vergonha ao Governo”, repetia dom Francisco em suas falas no rádio. Numa das primeiras entrevistas que fiz com ele ouvi atentamente uma frase, ainda muito atual: “Com o povo passando fome é mais fácil comprar votos. Os políticos não têm interesse em resolver o problema da seca”. Era uma referência à vergonhosa forma encontrada pelo Governo para mandar esmolas aos sertanejos via alistamento nas frentes de emergência.
Mas o que mais me despertava curiosidade em Dom Francisco era sua forma de atuação firme. Foi um sacerdote acima do seu tempo, de ampla visão social. Para os pajeuzeiros, ele era o deputado, o governante, a sua voz. Um dia marquei com ele uma entrevista e quando cheguei lá o encontrei bastante descontraído, comentando a repercussão das minhas matérias no DP sobre saques e ameaças de mais saques no Sertão.
Em meio a uma baforada e outra num cachimbo inseparável nas horas de relax, dom Francisco produziu a frase que rendeu uma manchete de primeira página na edição domingueira do velho DP, que deu o que falar, porque fora entendida pelas autoridades federais e estaduais como uma incitação à invasão às feiras livres do Sertão por trabalhadores famintos.
“A fome é má conselheira. Portanto, saque é um direito sagrado que o trabalhador faminto tem. Deve-se saquear de quem tem, pois é um direito dado por Deus e plenamente reconhecido pelas nossas leis”.
Dom Francisco era assim. Nunca lhe faltou coragem para dizer as coisas. Nunca lhe faltou consciência de ser cidadão. Acompanhou a vida social do País e do Nordeste, particularmente, identificando os seus estrangulamentos e enxergando suas potencialidades. Ainda nos anos de chumbo, foi escolhido pela CNBB para integrar a Comissão Especial do “Mutirão Nacional para superação da miséria e da fome”, voltada para combater o escândalo da fome crônica e da carência alimentar.
Sua coerência profética se fez ouvir, diante do histórico estado de miséria e pobreza que a estrutura de desigualdade social impõe a milhões de brasileiros. No período extremamente difícil da ditadura militar no Brasil, manteve-se fiel ao exercício de sua missão, como pastor e cidadão. Pregou que os cristãos têm o dever de mostrar que o verdadeiro “socialismo” é o cristianismo integralmente vivido, a justa divisão dos bens e a igualdade fundamental de todos.